domingo, 26 de abril de 2015

Estão Proibidos os Celulares Durante o Pênalti

 Pênalti pro meu time. Forma-se aquele clima inconfundível, que começa com uma euforia que muito se parece com a de um gol e vai, aos poucos, se transformando numa tensão e num silêncio quase fúnebre, a espera de um milagre bastante provável, do fato consumado do gol.

  Esse é o momento de concentração máxima. Não dos jogadores, e sim a nossa, dos torcedores. Todo mundo que torce sabe: Na hora do pênalti, o bom torcedor não vê nada, não ouve nada, não sente nada, exceto, talvez, suas batidas no coração e a voz do narrador. E era nesse estado de êxtase que eu gostaria de estar, mas uma coisa me incomoda, me tira o foco. Me deixa sem entender. Se eu estivesse em campo, não poderia cobrar o pênalti, não com aquele incômodo zumbindo na minha cabeça, ou melhor, brilhando diante dos meus olhos.

  Ao meu lado, frente e ao redor de mim, todos estão sacando seus telefones celulares e apontando suas câmeras para o campo, se preparando pra filmar o possível gol, ou pra apagar o vídeo no caso do atacante não estar no seu melhor dia, e sim meus caros, me chamem de rabugento, antiquado ou chato, ou todos os predicados que quiserem, mas eu acho isso um pé no saco.

 Ser torcedor é um exercício de irracionalidade, onde a razão se cala e o coração grita, vibra e as vezes para - mas geralmente volta, ávido pra ver o que vai acontecer a seguir. Mas tento ser racional pelo menos aqui: Por que, e pergunto apenas por que, um caríssimo companheiro de arquibancada (gostaria de usar "geraldino", pois gosto desse termo, mas não sou dessa época, infelizmente) precisaria filmar aquele momento, e justo aquele momento, o climax, ali no estádio, em que ele pagou pra estar e consequentemente, vivenciar ao máximo a experiência?

 Sei que na era do Facebook minha pergunta poderia ser respondida com um simples "Porque sim!", mas porque sim não é resposta, e se for, a pergunta foi mal formulada. Então, faço questão de reformular: Se você pagou pra estar ali, pra ver pessoalmente, pra ver a história acontecer ali diante dos seus olhos e ser parte da experiência, por que você precisa abrir mão disso tudo no momento mais importante e assistir tudo em uma tela de 4 polegadas?

 Enquanto penso nessas perguntas, o treinador adversário parece estar possuído por um demônio quaisquer, joga a garrafa de água no chão, aponta e gesticula pro quarto árbitro, anda em círculos. A moça um pouco mais abaixo na arquibancada não quer nem ver, esconde o rosto no ombro do namorado, e ali mesmo fica por um tempo, dando rápidas espiadas, como quem sabe que deveria ver, mas simplesmente não quer. O tiozinho da pipoca (posso chamá-lo assim? desconheço o termo politicamente correto pra esse simpático figurão dos estádios. Milho-descendente soa estranho) esquece que está ali a trabalho, deixa os clientes na mão e vira-se pro campo. Menos discretos e mais numerosos, os olhares de esperança e tensão se alternam na multidão, essa um monstro com rostos e muitos corações diferentes, mas afinados.

  Mas uma parte dessa multidão não viu nada disso. Ou viu, bem pequenininho ali na tela do Smartphone. Viu mas não viveu. Volto a me perguntar: Por que? Há dezenas de câmeras muito mais próximas da jogada, de grandes emissoras de TV, capturando cada piscar dos jogadores. E há o Youtube: Alguém ali vai colocar aquilo no Youtube depois.

  De repente, me vem a resposta: O "Eu estava lá!" do meu avô era nebuloso, era apenas uma história imprecisa, muitas vezes exagerada e frequentemente desmentida pela minha avó, mas que ele contava com uma imensa felicidade. O "Eu estava lá!" da nova geração pode ser o vídeo que ele mesmo filmou ali, e vai guardar por 40, 50 anos e mostrar aos netos - se conseguir tal façanha, o que eu sinceramente duvido. Guardar uma memória me parece mais fácil, claro, se for uma memória digna de nota, uma grande memória. Ela pode ficar imprecisa, e talvez mais charmosa, mas vai estar lá, e se estiver, valerá a pena ser contada. Me pergunto se nossos netos vão querer ver tudo o que nós gravamos com nossos celulares.

  Talvez a questão seja "Eu ESTOU aqui". É, acho que estou esquentando. Hoje em dia tudo é ostentação, inclusive uma diversão tão mundana quanto o futebol. Sim, há quem queira glamourizar o ópio do povo, o esporte das massas, e ir ao jogo não basta - tem que mostrar pra aqueles dois confidentes mais importantes: Deus e o Mundo.

  Eu também faço check-in ao chegar no estádio. E também tiro fotos - uma ou duas, antes do jogo começar, durante o intervalo ou hino, sei lá. Quando o jogo está parado. Com isso, as pessoas sabem que estou lá e pronto, podem curtir ou não curtir, fazer piadinhas dizendo que dou azar e todas essas besteirinhas que gostamos. Uma vez que estou lá, todos sabem que eu vi o pênalti em primeira pessoa, a menos que tenha ido ao banheiro. A mensagem que as pessoas querem passar seria: "Vejam! Eu não estava apertado na hora do pênalti!"?

  Não sei, acho que não. Retomo o foco.

  O artilheiro do meu time corre, bate e... GOLAÇO! Porque gol do meu time é golaço, até de pênalti! E eu comemoro, pulo, giro, grito, jogo os braços pra cima e depois os coloco na altura da cintura, dando um berro numa posição que em outra realidade me transformaria num Super Sayajin.

  Mas eu fui o único? Sim! Os outros em volta não puderam jogar os braços pra cima, porque é perigoso derrubar o celular. Nem gritar, pra não estragar a filmagem, o microfone tá virado pra boca deles afinal! Não puderam pular, pra não tremer a imagem. Não fizeram nada, só balançaram a cabeça e prontamente apertaram "compartilhar" e começaram a digitar tudo o que gostariam de ter feito, para logo depois disputarem o congestionado sinal da antena de telefonia mais próxima do estádio.

  Tudo para, possivelmente, dizerem que estavam lá. Uma mentira: Eles não estavam. O corpo estava, mas a alma deles estava em algum servidor no Vale do Silício.

  Entrar nesse mérito é uma batalha perdida. A nossa geração é só o começo. As próximas vão filmar, mais e mais e mais e viver menos e menos e menos, talvez com seus óculos e wearabes, mas assumidamente, e mais aceitavelmente, sem precisar olhar pra tela enquanto filma.

 Até lá eu vou continuar sendo o antiquado, que não filma, não tira o celular do bolso, e mais importante, não entende qual a graça que essa molecada vê nessas modernidades.


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