segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

PhyloCode: Remontando a árvore genealógica


   Se você, jovem gafanhoto, está lendo esse texto, é porque provavelmente não é um gafanhoto. É um homo sapiens sapiens (sim, sapiens duas vezes), ou, num contexto ainda mais amplo, um mamífero. E ser um mamífero te coloca em um grau de parentesco mais ou menos próximo com os outros mamíferos, assim como as aves são parentes próximas entre si, idem aos répteis, peixes, insetos, e todos os outros, como aprendemos na escola quando estudamos as classes dos animais.

Isso é uma coisinha básica sobre biologia que qualquer criança aprende, e é também um dos pontos mais importantes no estudo dos animais, plantas, fungos e afins, uma forma prática de organizar as coisas. É a chamada taxonomia dos seres vivos, ou sistemática, que define os animais em classes, famílias, ordens, etc e tal.

Até hoje, essa maneira de classificar os seres vivos funcionou muito bem, obrigado. Mas, segundo alguns biólogos, existe um pequeno problema com ela: Está errada.


Essa família é muito unida...

Mas o que pode haver de errado com um sistema que vem funcionando perfeitamente bem já a alguns séculos? Esse é o problema: Alguns séculos.

A idéia de classificar os animais provavelmente ganhou corpo com os trabalhos de Aristóteles, no século IV a.c., que ordenou os animais pela aparência do sangue e tipo de reprodução. Pulando muitos intermediários, chegamos ao modelo atual, fruto de um trabalho do sueco Carl Linneo, no século XIII.

De 1758, ano em que os trabalhos de Linneo foram concluídos, até hoje, a biologia evoluiu em praticamente todos os seus campos de estudo, alguns de forma assombrosa. Só uma coisa permanece inalterada: A maneira de ordenar e classificar os seres vivos, que ainda é baseada em idéias de um tempo onde nem se pensava em coisas que mais tarde que revolucionariam a biologia, como o DNA ou a Teoria da Evolução. Foi criada num tempo onde acreditava-se que os animais sempre foram assim, como são hoje, e jamais mudariam, o que atualmente acreditamos (e temos fortes evidencias de) que não seja verdade.

Nesse ponto, as novas descobertas estão cada vez mais colocando em xeque a confiabilidade desse sistema. Quando analisaram o DNA do Celacanto, por exemplo, descobriu-se que ele guarda mais semelhança com animais que, na atual classificação, deveriam estar bem mais longe em parentesco dele, como os mamíferos, do que de certos peixes, como as sardinhas, que pela classificação atual deveriam ser parentes relativamente próximos.

Repare que as aves estão lá, entre os dinossauros mais "modernos
Fora pequenos problemas lógicos. Dinossauros são uma classe extinta de animais. Aves são descendentes diretas de dinossauros, com algumas penas e bicos a mais, mas, em essência, não mudaram muita coisa desde que surgiram, ainda como dinossauros e portanto, pode-se dizer que são dinossauros modernos. Se aves são dinossauros, eles não estão extintos, certo? Paralelamente, o DNA dos nossos amiguinhos penosos guarda semelhanças enormes com o DNA de crocodilos (aliás, o DNA nos ensinou que os crocodilos são mais parentes das aves que dos demais répteis). Mas enquanto crocodilos são répteis, aves são aves. E os dinossauros, coitados, estão extintos. E tudo isso não faz o menor sentido, pois todos são, pelo menos segundo o DNA, parentes relativamente próximos...

E também muito ouriçada...

Então, o correto seria colocar os crocodilos no mesmo bolo das aves, ou fazer de aves e répteis uma grande e única família, ou ainda categorizar aves como dinossauros, répteis como répteis e crocodilianos numa classe à parte, nem dinossauro, nem réptil? Talvez, a melhor saída não seja nenhuma dessas alternativas.

É isso que defendem os defensores do PhyloCode (abreviação de Phylogenetic Systematic, ou Sistemática Filogenética), uma nova corrente da biologia que propõe uma revolução no que diz respeito a essas classes, usando uma outra maneira de classificar os animais.
Para eles, o mais importante para definirmos as famílias e classes dos animais não são características morfológicas e sim o seu “clado”, ou seja, o ancestral que esses animais tem em comum e sua consequente similaridade genética. Seguindo essa lógica, poderíamos aproximar, por exemplo, animais como porcos, baleias e hipopótamos no desenho da árvore genealógica das espécies, já que todos eles tem um ancestral comum relativamente recente.

Sendo assim, não estaríamos mais entre os mamíferos, e sim, no máximo e grosseiramente, pertencentes à classe dos animais descendentes daqueles pequenos seres que surgiram ainda durante o reinado dos dinossauros e se diversificaram em todos esses animais que hoje conhecemos por mamíferos. Poderíamos ainda afunilar mais um pouco e obter uma maior precisão na classificação, separando, por exemplo, os ornitorrincos e equidnas, animais bastante diferentes dos demais mamíferos, e colocá-los numa classificação à parte, a partir do momento em que o ancestral comum deles deixou de ser o mesmo que o dos demais mamíferos.

Exemplo de mamífero
A proposta, entretanto, não é a de sair mudando o nome de todos os animais, a torto e a direito, como pode parecer. Calma, provavelmente ainda seremos homo sapiens sapiens por muito tempo. A idéia é criar classificações mais condizentes com os conhecimentos modernos, nomear com mais clareza novos animais descobertos e, se preciso, reclassificar principalmente os animais que estejam dando um nó na cabeça dos taxonomistas a cada nova descoberta que os biólogos fazem.

Isso pode ter um impacto muito mais amplo do que parece, uma vez que problemas envolvendo algo em teoria simples e subjetivo, como apenas o nome que lhe foi dado e a classe que lhe foi atribuída, as vezes chega a atrapalhar que certas espécies se beneficiem de programas de conservação ambiental, por exemplo. Até os eternos negadores da teoria da evolução costumam aproveitar-se da dificuldade que os cientistas tem de classificar certos animais para distorcer as evidências em seu favor... Com as novas idéias baseadas na cladística, a tendência é que problemas desse tipo diminuam consideravelmente.

O sistema desenvolvido por Linneo, baseado primordialmente em dois nomes em latim, sendo o primeiro relativo ao gênero e o segundo à espécie (há ainda um terceiro nome, e refere-se à subespécie, ou seja, no caso do homo sapiens sapiens, “homo” é referente ao gênero humano, “sapiens” o específico da espécie humana atual, e por fim, o segundo “sapiens” refere-se à nossa subespécie) no entanto, é incompleto para classificar os animais sob essa nova ótica. E é ai que está a polêmica da coisa: Parece claro para todos que o sistema de Linneo está precisando, no mínimo, de reformas.

Mas não é claro para todos que o PhyloCode seja o grande salvador da pátria. E um dos vários argumentos contrários que surgiram refere-se ao fato de que novas descobertas podem acabar mudando a classificação de alguns animais com uma frequência muito grande, ou seja, pode acabar criando uma sensação de desordem e um sentimento de incerteza constante. Os defensores da nova nomeação, no entanto, defendem que a incerteza é um dos princípios da ciência, e que portanto, em essência não existem maiores problemas com ela. O objetivo da ciência é justamente transformar o conhecimento, e portanto, ela tem que estar aberta as mudanças constantes. Outro ponto a ser ressaltado é que entre os próprios defensores do PhyloCode ainda há divergências acerca de como será feita exatamente a nova nomeação, com duas ou três correntes distintas entre eles próprios.

As idéias do PhyloCode começaram a ganhar força nos anos 90. E a cada ano que passa, fazem mais barulho. Estão ficando cada vez mais frequentes reuniões entre grandes nomes da ciência e das diferentes esferas da biologia atual para debater o tema, e talvez, nos próximos anos, a idéia pode realmente “pegar” e se tornar o padrão aceito pela ciência. O PhyloCode, no entanto, não é a única proposta de reforma, e sua implementação (ou a de alguma proposta “rival”) provavelmente não será num futuro tão próximo.

"Calma rapazes, somos todos uma grande família, não leram o texto?"
A verdade é que é preciso mudar. Como e quando vão faze-lo, é algo que só o tempo dirá... Até lá, continuamos tão mamíferos quanto os ornitorrincos, os crocodilos continuam tão répteis quanto os lagartos e as aves, coitadas, embora o sejam por direito, ainda não são respeitadas como as herdeiras diretas dos temíveis Tiranossauros pelo grande público...

2 comentários:

  1. Nossa. Adorei seu texto. O ótimo da ciência é que ela não é absoluta e está sempre em constante modificação, pois assim como o conhecimento é mutável a ciência assim também o é. Obrigado pelo texto Loco Tales.
    Allysson Nascimento
    adnnascimento@hotmail.com

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  2. Texto sensacional! Parabéns pelo bom humor!

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