São Paulo respira dinheiro. E dinheiro é frio. Simples assim. Entretanto, ela não é o monstro cinza sem sentimentos que as pessoas vêem de fora. As pessoas daqui não são monossilábicas, incapazes de dirigir sequer um sorriso a um estranho. Pelo contrário: Como em todo lugar, há gente tímida, e gente que gosta de simplesmente prosear. E os que gostam, por vezes, falam demais.
O problema é que esse segundo grupo de pessoas costuma simplesmente não encontrar ninguém com tempo para a tal prosa, pelo menos não nos lugares mais famosos da cidade, como na atarefada Avenida Paulista ou a frenética 25 de Março. Por isso, não é lá onde elas estão. Estão espalhadas pela cidade, loucas para contar as suas histórias, ouvir as histórias dos outros ou simplesmente comentar sobre a rodada do futebol ou a chuva de ontem. Eu conheci muita gente assim por São Paulo. Alguns eu não vou esquecer tão fácil.
O ano era 2006 e eu estava engajado na realização de um sonho simples, que era comprar um videogame mais moderno. Para tal, aceitei um emprego como entregador de panfletos, em uma corretora de planos de saúde. Tirando a privação de sono ocasionada por ter que sair muito cedo, e estudar até tarde, o emprego foi definitivamente o mais divertido que eu já tive. Sim, por que a cada dia recebíamos um destino diferente, um bairro novo para que eu, um garoto de 16 anos, conhecesse, na minha própria cidade. Era como ser pago para fazer turismo. Caminhar por vários km até entregar todos os panfletos não era, nem de longe, um problema: Sempre gostei, e até hoje mantenho o hábito de caminhar por horas, frequentemente sem um destino.
Saber que no dia seguinte iríamos para um lugar novo era uma festa para mim, até maior do que saber que o destino era um lugar onde houvesse algo que eu gostava. Como o bairro de Santana, onde ainda havia um divertido (e barato) fliperama de rua onde eu gostava de relaxar após o expediente, antes de voltar para casa. Ou a Liberdade, um bairro no estilo oriental onde se localiza boa parte da colônia asiática na cidade, onde eu me sentia em um verdadeiro desenho japonês. Ou ainda o lendário bairro do Jaçanã, sem nada de especial, porém, que trazia consigo um convite a nossa equipe de panfleteiros para cantar durante toda a manhã (naturalmente, a música não poderia ser outra senão “Trem das Onze”, devidamente repetida por horas), além de outros bairros que não irei citar aqui, mas ainda contarei em outra oportunidade, já que não quero me afastar do tema da postagem.
Que remonta aos simpáticos paulistanos, escondidos, portando diferentes sotaques, seja italiano na Móoca, Japonês na liberdade ou mesmo nordestino em Itaquera.
Conheci inúmeros. Muita gente nos saudava enquanto exercíamos nossa função. Faziam perguntas.
- Quanto vocês ganham por esse serviço, meninos?
- Dez reais por dia de trabalho senhora.
- Só isso? Eu conheço um senhor que paga quinze! Aqui está o telefone dele
Cansei de receber conselhos e telefones de gente que supostamente me pagaria mais. A abordagem era comum, mas não era apenas nesse entorno que as pessoas vinham conversar conosco. Em geral, senhores e senhoras idosos ou de meia idade, ou mesmo outros adolescentes, estudantes, de escolas públicas e mais frequentemente, de escolas particulares, puxavam todo o tipo de assunto. Em quase todos os casos, amistosos. Em apenas uma oportunidade, um grupo de alunos tentou nos provocar, mas demos de ombros e continuamos o trabalho.
Algumas pessoas chegavam a nos oferecer lanches! Em mais de uma ocasião, sentamos em uma calçada para tomar café da manhã, e algum morador surgiu nos oferecendo um pouco de café com leite para acompanhar o pão de forma com mortadela que quase sempre levávamos.
E assim conheci muita gente interessante, pessoas de todos os tipos com histórias de todos os tipos, que eu usarei para criar outras postagens, num futuro próximo. Por enquanto me atentarei a um senhor, de aparentes 65 anos, cabelos bem brancos, que sentou ao meu lado no trem, portanto uma mala simples e uma sacola com algumas roupas.
Eu não estava interessado na história dele. Completamente alheio ao sol que queimava cabeças lá fora, no quente meio dia de verão paulistano, eu só queria dormir no caminho para casa. Mas aquele senhor insistia em puxar assunto, e meu amigo, insistia em interagir, criando um ciclo vicioso, e pior, me inserindo na conversa esporádicamente. Até que meu amigo soltou a pergunta que mudou totalmente a conversa:
- Estamos voltando do trabalho, e o senhor? Estava viajando?
- Digamos que sim. 17 anos de viagem, hahaha! Aproveitei bem, embora não por minha vontade...
- O senhor...?
- Estou saindo hoje da cadeia. Querem ver a minha condicional?
Opa! A conversa que estava entediante de repente se tornou muito mais interessante do que o meu sono. Nossos olhares incrédulos nos entregaram na hora.
- Vejam só, espero que essa seja a primeira, e a última condicional que vocês verão na vida. A menos é claro que algum de vocês dois se forme em direito!
E então começou um verdadeiro interrogatório com o senhor. De onde era? Por que foi preso? E a família? Onde havia estado? Como é a vida na cadeia? Adolescentes podem ser muito curiosos, especialmente quando o assunto envolve coisas proibidas.
E a cada palavra do senhor, podia-se ver uma vida passando diante dos seus olhos. O olhar perdido pela janela, aliás, denunciava isso. Algumas perguntas que ele indagava, em meio a própria história, ilustravam um homem totalmente perdido em sua própria terra natal
- O que aconteceu com a estação que tinha entre Eng° Goulart e o Tatuapé?
- Nunca houve estação ai senhor!
- Houve sim. Devem ter sido desativadas faz muito tempo, mas estou sentindo falta de umas duas ou três estações, além de ter algumas nesse mapa que nunca ouvi falar. Você entra por uma porta, e ao sair dela, 17 anos depois, parece que saiu em outro lugar!
Divertia-se o homem, com risadas discretas, sem no entanto desviar os olhos da janela que tanto lhe maravilhava.
O senhor começou a narrar sua história, que começou com festas e amigos errados. Passou por uma namorada consumista que lhe deixou completamente apaixonada. Tornou-se a saga de um grande ladrão de bancos. E terminou em uma fantástica perseguição automobilística, quando a Brasília (roubada) dirigida pelo então jovem imaturo, com sua amada no banco de passageiros, terminou na prisão, e na morte da namorada que o levou até a aquele ponto.
Prisão, mas não por muito tempo. Por alguns meses, até que ele fugiu. E conseguiu ficar foragido por um bom tempo. Tempo suficiente para casar-se, e ter nada menos do que 3 filhos. 5 anos, se escondendo, fugindo. Até ser pego de novo. Pego, pela segunda vez, para fugir novamente, dessa vez, escondendo-se no interior da Bahia, bem longe daqui. Onde ficou em segurança por mais 3 anos, até saber que sua esposa havia sido morta por um de seus ex-amigos de festanças. Voltou, se vingou, e se entregou. Dessa vez, para não fugir mais. Mas a tempo de participar do lendário massacre do Carandiru. Sair com vida daquele inferno. Sobreviver por mais uma década e meia, e finalmente retornar ao lar.
A riqueza de detalhes da história acima, eu não seria, nem em um milhão de tentativas, capaz de recriar como aquele senhor recriou. Gostaria de ter metade da capacidade de narrativa que ele tinha. Narrou perfeitamente todos os acontecimentos, fazendo com que a imagem de cada um ficasse gravada nas memórias dos dois adolescentes. Sim, a imagem. Eu não me lembro de como era a fisionomia exata daquele homem, mas posso me lembrar claramente da perseguição à Brasília, embora esta eu não tenha presenciado. Milagres de uma história muito bem contada.
Com um olhar um tanto quanto arrependido, mudando levemente a expressão, começou a falar, já quase chegando ao seu destino:
- Mas nesses 17 anos vi o quanto eu era idiota. Me diverti sim na época, não vou mentir. Mas perdi minha mulher e compliquei a vida dos meus filhos para sempre. Sei que hoje já tenho netos. Quero ser presente na vida dos meus netos, e é por isso que estou voltando direto para o bairro deles, sem nem saber se serei ou não bem vindo. Mas quero mudar a imagem que eles, e os meus filhos, tem de mim. Por mais que eu saiba que seja impossível.
Parou, suspirou, riu um pouco, sozinho, e continuou a falar
- Talvez eu até comece a trabalhar, só será difícil encontrar um emprego com essa idade e esse histórico. Quero mostrar aos meus filhos que é possível mudar sim. E quero ser um exemplo pros meus netos. Hoje não tenho moral alguma para cobrar, dizer: “Isso está errado”. Quero um dia poder dar lições, como os avós de vocês devem ter dado. Para isso o primeiro passo seria trabalhar. Será que não tem uma vaga com vocês?
E caímos todos na gargalhada.
Infelizmente, não tinha a tal vaga. Uma pena. Mas hoje eu aconselharia aquele senhor a montar um blog, com certeza. Ele poderia ganhar um bom dinheiro com sua maneira incrível de narrar suas histórias, igualmente fantásticas.
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