Sobre o que Evangelion fala?

Evangelion foi escrito por um homem sofrendo de depressão.

As pessoas esquecem ou não sabem disso. Sem essa informação é fácil cair no conto de que se trata de um desenho sobre robôs gigantes guerreando contra anjos. Se no começo a história realmente parece apenas isso, com o desenrolar, é fácil perceber que tudo é uma grande alegoria. Mas ao que?

Há tantas coisas retratadas em Neon Genesis Evangelion que eu corro o risco de escrever um textão maior que o de costume aqui. Algumas são óbvias, como o "dilema do porco espinho", nominalmente citado na série. Fala sobre como as pessoas tem que equilibrar a balança entre não ficar muito longe e afastar todos, ou se aproximar demais e arriscar que ambos se machuquem.

Outras, entretanto, estão debaixo da superfície, e são nessas aqui que a obra brilha.
Conforme a série avança, a sensação de que há algo a mais ali começa a crescer. Há praticamente uma colagem do consciente coletivo do jovem em Evangelion.

O protagonista sofre de covardia patológica. Ele quer fugir. Pra ele, as responsabilidades que surgem são um pesadelo, mas que opção ele tem? Se ele não fizer, o preço é alto. Ele tem questões em aberto com os pais. Há conflito, mas ele foge, sufoca. Rejeição, incompreensão. Está tudo lá.
Há a descoberta da sexualidade. Há o vazio da existência que só pode ser preenchido por um propósito que no fundo, não é seu, te impuseram. Há a intensa vontade de voltar para o conforto do que a sua vida já foi - mas você não pode, sua vida não é mais aquela. Há tantas outras coisas que eu nem sou capaz de identificar porque não sou a pessoa pra isso (o que eu sei sobre a psiquê humana é próximo do zero).

Evangelion também é sobre estar sozinho. Ser sozinho. Se sentir sozinho.
O protagonista não é o único nessa condição. Notadamente, ele e as outras duas crianças reagem a isso de formas bem distintas: enquanto ele (a criança n° 2) se apavora e descontrola, a criança n° 1 se fecha e se isola ainda mais, enquanto a criança n° 3 vive em uma desesperada e eterna batalha por atenção.
A solidão pode muitas coisas, como assustar, reprimir ou mesmo revoltar.

Até mesmo temas como relacionamentos abusivos estão ali (e veja como o mundo mudou: pelo que tenho notado, isso tem dado mais pano pra manga na internet do que a questão religiosa envolvida - e até satirizada - na série).

Há ainda uma questão freudiana envolvendo nosso herói e o robô que ele controla, que eu não vou explicar para não dar spoilers.

Nós já passamos do "futuro" retratado em Evangelion, mas é impressionante como a obra fala com o mundo de 2019.

Não estamos sendo atacados por anjos, mas temos nosso próprio colapso no forno chamado aquecimento global. E também temos governos querendo colocar isso debaixo dos panos. Temos grandes corporações dispostas a lucrar a todo custo. Temos as redes sociais que transformaram as relações interpessoais em extremos completamente insanos, por vezes perigosos e nada saudáveis. Nós nunca confiamos tanto em máquinas - e estamos sendo manipulados por elas ou pior, por quem manipula elas.

Mentalmente, moralmente e efetivamente, o mundo vai mal. Não vivemos uma sociedade menos perturbada que a do desenho. Na verdade, talvez estejamos pior.

É justo que Neon Genesis Evangelion finalmente alcance o mainstream que merece. E é caprichoso que isso aconteça no contexto de hoje.

Evangelion é um desenho de 1995 mas é a obra mais atual do catálogo da Netflix.